quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

VERITATIS SPLENDOR (O ESPLENDOR DA VERDADE) - RESENHA CRÍTICA


A Carta Encíclica Veritatis Splendor (O Esplendor da Verdade), do Sumo Pontífice João Paulo II, foi dirigida a todos os Bispos da Igreja Católica para tratar sobre algumas questões fundamentais do ensinamento moral da Igreja. A obra foi escrita no ano de 1993, décimo quinto ano do pontificado de João Paulo II.

Diante das situações corriqueiras pelas quais todo homem vivencia diariamente, as seguintes perguntas surgem em sua cabeça: Que devo fazer? Como discernir o bem do mal? Em um mundo onde o homem é levado a trocar Deus por diversos ídolos, a capacidade para responder essas perguntas fica comprometida. Aqui está um dos papeis da Igreja, interpretar todos os questionamentos morais do homem à luz do Evangelho e auxiliá-lo a encontrar a verdade nas diversas situações que surgem em sua vida. Porém, os princípios morais da Igreja parecem estar comprometidos com a influência das diversas linhas de pensamentos atuais, que existem tanto dentro quanto fora de suas estruturas. Com a finalidade de confirmar algumas verdades fundamentais da doutrina católica, o Papa João Paulo II resolveu escrever esta encíclica. Além de evocar algumas verdades, o Papa também nega veementemente outras verdades que foram deformadas pela influência relativista e positivista da sociedade hodierna. Para essa empreitada o Papa recorre à Sagrada Escritura e à Tradição apostólica.

         A Encíclica foi dividida em três capítulos com os seguintes temas: Capítulo I, “Mestre, que devo fazer de bom...?”, que mostra a resposta dada por Jesus Cristo à questão moral; Capítulo II, “Não vos conformeis com a mentalidade deste mundo”, que apresenta o discernimento elaborado pela Igreja, diante de algumas tendências da teologia moral atual; e Capítulo III, “Para não se desvirtuar a cruz de Cristo”, que trata sobre o bem moral para a vida da Igreja e do mundo.

O Capítulo I se desenvolve todo em cima da parábola do jovem rico (Mt 19,16-21). “Um jovem aproximou-se de Jesus e lhe perguntou: Mestre, que devo fazer de bom para ter a vida eterna? Disse-lhe Jesus: Por que me perguntas a respeito do que se deve fazer de bom? Só Deus é bom. Se queres entrar na vida eterna, observa os mandamentos. Quais? Perguntou ele. Jesus respondeu: Não matarás, não cometerás adultério, não furtarás, não dirás falso testemunho, honra teu pai e tua mãe, amarás teu próximo como a ti mesmo. Disse-lhe o jovem: Tenho observado tudo isto desde a minha infância. Que me falta ainda? Respondeu Jesus: Se queres ser perfeito, vai, vende teus bens, dá-os aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me!”

Cada trecho da parábola é analisado e dele retiram-se ensinamentos da doutrina moral católica. “Mestre, que devo fazer de bom para ter a vida eterna?”, nesta pergunta o jovem mostra, no fundo, o desejo de todo homem de ter uma vida feliz e verdadeiramente plena. O jovem pergunta quais ações ele deve fazer, portanto a plenitude se alcança com ações concretas e moralmente corretas e não apenas com escolhas fundamentais e distantes das atitudes diárias do indivíduo. Outro fato que o jovem demonstra é a iniciativa de voltar-se para Cristo, reconhecendo nele o caminho para a vida eterna.

Jesus responde “Só Deus é bom”, e deixa claro que somente Deus pode responder a questão do bem, pois só ele é o Bem. Em última análise o homem só encontra resposta sobre o bem moral quando volta sua mente e seu coração a Deus.

Jesus continua, “Se queres entrar na vida eterna, observa os mandamentos”. Aqui o Senhor se refere aos mandamentos, que podem ser entendidos como os 10 mandamentos e a Lei de Moisés em concordância com a Lei Natural inscrita no coração de todo homem. No Antigo Testamento a observância à Lei levaria o homem a alcançar a Terra Prometida, já no Novo Testamento Jesus promete a Vida Eterna para quem seguir seus ensinamentos. Sempre fica claro, na exposição do Papa, que a Lei Natural não se contrapõe aos Mandamentos.

Após o comentário do jovem, que demonstra a sua satisfação incompleta perante o fato de atender plenamente os mandamentos do Antigo Testamento e ainda assim sentir que falta algo, Jesus oferece uma alternativa mais radical, “Se queres ser perfeito, vai, vende teus bens, dá-os aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me!”. Com esta passagem Jesus mostra o caminho da perfeição, que passa pelo total desapego às coisas materiais. Aqui Jesus deixa claro, que não basta ter uma postura ética e moralmente correta, é preciso mais para se alcançar a plenitude nesta vida e consequentemente ganhar a vida eterna. Atingir a perfeição passa pela busca da santidade, em última instância. João Paulo II destaca aqui a atitude de Jesus de oferecer a opção ao jovem, deixando a cargo de sua liberdade a adesão à proposta ou não. Deus sempre obedece a liberdade do ser humano, e é sempre o homem o autor de suas próprias escolhas.

No segundo capítulo o Sumo Pontífice aborda algumas tendências que se contrapõem à Sã Doutrina. Seguindo sempre o mesmo raciocínio, a Sagrada Escritura e a Tradição são as fontes que dão o correto discernimento ao homem, através de alguns princípios morais universais. A primeira tendência da teologia moral hodierna diz respeito à relativização da verdade. Segundo essa tendência, cabe à consciência individual o discernimento entre o que é moralmente bom ou mal. Desta forma a consciência não estaria a serviço do entendimento de uma verdade universal e posterior aplicação das escolhas morais. Pelo contrário, ela mesma estabeleceria seus critérios morais subjetivos e, consequentemente, diferentes dos critérios do próximo. Essa linha de pensamento desemboca no ateísmo ou na negação da transcendência. Segundo os seguidores dessa tendência, a liberdade deve ser exaltada a ponto de considerá-la como a licença de fazer o que se queira, mesmo o mal, contanto que traga satisfação aos sentidos. Porém o Papa deixa claro que a liberdade depende da verdade (não subjetiva e relativista e sim universal). “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8,32).

Seguindo essa mesma abordagem, alguns teólogos moralistas defendem a ideia de que a doutrina católica e a Revelação divina estariam restritas ao estabelecimento de critérios relacionados à ordem da salvação, enquanto que os critérios éticos de origem humana é que deveriam ditar o conteúdo moral, dentro dos diversos contextos e realidades da humanidade. Fica claro para o Papa que uma interpretação que coloca a autonomia da razão humana acima das leis universais, contradiz a Sã Doutrina, e deve ser condenada. “A lei moral provém de Deus e nele encontra sempre a sua fonte”.

Para aprofundar a temática da liberdade do homem e das suas escolhas, João Paulo II aborda a dimensão da consciência humana. Dentro do coração de cada homem existe uma lei natural, que pelo uso da razão, iluminada pela Revelação divina, leva-o a reconhecer o bem e o mal. É no mais intimo do seu ser, lá na sua consciência, que Deus fala ao homem e o faz discernir entre o que é certo ou errado. É por essa consciência que o homem será julgado. A lei natural e a Verdade divina, põem ao homem suas exigências morais, e a consciência coloca em prática essas exigências. Na aplicação prática das escolhas da consciência é que acontece o vínculo entre a liberdade e a verdade. O Papa finaliza essa seção dizendo que os cristãos possuem um grande auxílio para formação da consciência, que são os ensinamentos da Igreja, a grande mestra da verdade.

Ainda falando sobre a liberdade, o Sumo Pontífice ressalta que as escolhas deliberadas de um cristão devem estar de acordo com a opção fundamental, a qual ele decidiu viver. Isto é, a escolha maior de uma pessoa, por exemplo, “ser cristão e buscar a vida eterna”, deve orientar todas as escolhas cotidianas dessa pessoa. Essa posição foi destacada, pois alguns teólogos e pensadores dizem que as escolhas cotidianas do ser humano não interferem em sua opção fundamental de vida. É o que acontece quando a pessoa diz já estar salva por ter fé e ter aceitado seguir Jesus. Mas o Papa deixa bem claro que a infidelidade do cristão, e o não cumprimento dos mandamentos de Deus, levam o fiel a perder a graça da justificação.

Na seção IV do Capítulo II, João Paulo II trata sobre o Ato Moral. É exposta a errônea tendência hodierna de classificar um ato moral pelas suas consequências, e pela proporção de resultados bons ou ruins. Trata-se do consequencialismo ou proporcionalismo. Segundo esse pensamento, seria lícito e moralmente aceitável praticar um ato que prejudique alguém, mas que gere benefícios para uma quantidade maior de pessoas. Ou então, um ato que vá contra a Lei divina e os mandamentos, mas que gere mais consequências positivas do que negativas. Ou ainda, um ato que seja uma boa obra, mas que não possua boas intenções. O Papa ratifica a posição da Igreja, e vai contra essas linhas de pensamento, dizendo que a “moralidade do ato humano depende primaria e fundamentalmente do objeto razoavelmente escolhido pela vontade deliberada”. Em ultima instância, o ato moralmente bom é aquele que é feito buscando-se conscientemente agradar a Deus.

O Capítulo III traz o caminho para a liberdade, que passa sempre pela verdade e pela cruz de Cristo. A experiência humana mostra que a liberdade individual constantemente está inclinada para a escolha de bens efêmeros e passageiros. O Papa chega a dizer então que "a liberdade necessita de ser libertada. Cristo é o seu libertador”.

João Paulo II condena fortemente a mentalidade que tenta separar Fé e Moral. Como se a Igreja devesse se preocupar e manifestar apenas sobre a primeira. É um grande equívoco acreditar que a Fé seria apenas uma busca transcendental de Deus e que para entrar em comunhão com ele não seria necessário seguir condutas moralmente corretas e absolutas. A palavra para ser acolhida necessita obrigatoriamente ser posta em prática, portanto Fé e Moral são duas vertentes que andam juntas.

A seguir são tratados alguns temas sobre os quais os atos morais possuem grande importância social, como por exemplo, na política, na economia e nos diversos campos da sociedade. O Papa exorta os teólogos moralistas a praticarem um cuidadoso discernimento moral, perante uma sociedade dominada pela ciência e a técnica, sujeita aos perigos do relativismo, pragmatismo e positivismo. Ele ressalta que os princípios morais não fazem parte de um estudo empírico e científico, e que somente a Fé indica ao homem a verdade sobre as coisas. Por fim o Sumo Pontífice conclama todos os Bispos a seguirem os fundamentos básicos da moral católica, e defenderem e pregarem a Sã Doutrina, em detrimento de tantas formas de pensamentos existentes dentro e fora da Igreja.  

A preocupação do Papa João Paulo II em reafirmar e esclarecer alguns fundamentos da doutrina moral católica era importante naquele ano de 1993 e continua sendo, principalmente nos dias de hoje. Os pensamentos que se opõem aos ensinamentos da Igreja Católica se tornam cada vez mais presentes no meio da sociedade cristã. O relativismo, o positivismo e o racionalismo, aliados à exaltação de uma falsa liberdade, estão levando confusão e cegueira aos homens dos dias de hoje. A contenção dos desejos é vista como uma repressão e um assalto à liberdade humana; a defesa dos direitos básicos de vida do ser humano é julgada pela sociedade como um pensamento retrógrado; a existência de valores morais universais é entendida como um doutrinamento irracional por parte da Igreja, imposto aos seus fieis. Várias são as formas de condenação aos valores morais cristãos e católicos. Apesar de todo o cenário aparentemente negativo, é visível a ação do Espirito Santo no meio do povo, sempre trazendo luz onde há escuridão.

Após uma busca da verdade, de forma consciente, livre e honesta, por parte do ser humano, não existem possibilidades mais plausíveis, que expliquem os mistérios da vida, do que a verdade proveniente da divina Revelação. Após um forte questionamento racional do homem sobre suas indagações existenciais, não restam dúvidas sobre a necessidade da Fé para se obter respostas sensatas. Chegada à aceitação de Jesus Cristo, o homem observa que a obediência aos mandamentos pode até ser uma difícil tarefa, porém não existe contradição com a lei natural inscrita em seu coração. Em consequência disto, o homem compreende o Esplendor da Verdade que vem de Jesus Cristo, o homem perfeito, com valores morais perfeitos e com ensinamentos que, se cumpridos, levam todos à vida eterna.

A presente encíclica é útil para todos os homens de boa vontade, que buscam a verdade com coração aberto e sincero. Os pensamentos nela defendidos e condenados servem para orientar a todos que buscam levar uma vida moralmente correta, evitando que caiam em ensinamentos deturpados e distanciadores da verdade. O documento deveria ser sempre relido pelo corpo sacerdotal da Igreja, pelos teólogos moralistas e todos aqueles que receberam a missão de levar luz ao mundo, para que não se percam em tendências modernistas.

Hugo de Paula Prudente é acadêmico do segundo ano do Curso de Teologia da Pontifícia Universidade Católica de Goiás. 

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