A
Carta Encíclica Veritatis Splendor (O Esplendor da Verdade), do Sumo Pontífice
João Paulo II, foi dirigida a todos os Bispos da Igreja Católica para tratar
sobre algumas questões fundamentais do ensinamento moral da Igreja. A obra foi
escrita no ano de 1993, décimo quinto ano do pontificado de João Paulo II.
Diante
das situações corriqueiras pelas quais todo homem vivencia diariamente, as
seguintes perguntas surgem em sua cabeça: Que devo fazer? Como discernir o bem
do mal? Em um mundo onde o homem é levado a trocar Deus por diversos ídolos, a
capacidade para responder essas perguntas fica comprometida. Aqui está um dos
papeis da Igreja, interpretar todos os questionamentos morais do homem à luz do
Evangelho e auxiliá-lo a encontrar a verdade nas diversas situações que surgem
em sua vida. Porém, os princípios morais da Igreja parecem estar comprometidos
com a influência das diversas linhas de pensamentos atuais, que existem tanto
dentro quanto fora de suas estruturas. Com a finalidade de confirmar algumas
verdades fundamentais da doutrina católica, o Papa João Paulo II resolveu
escrever esta encíclica. Além de evocar algumas verdades, o Papa também nega
veementemente outras verdades que foram deformadas pela influência relativista
e positivista da sociedade hodierna. Para essa empreitada o Papa recorre à
Sagrada Escritura e à Tradição apostólica. A Encíclica foi dividida em três capítulos com os seguintes temas: Capítulo I, “Mestre, que devo fazer de bom...?”, que mostra a resposta dada por Jesus Cristo à questão moral; Capítulo II, “Não vos conformeis com a mentalidade deste mundo”, que apresenta o discernimento elaborado pela Igreja, diante de algumas tendências da teologia moral atual; e Capítulo III, “Para não se desvirtuar a cruz de Cristo”, que trata sobre o bem moral para a vida da Igreja e do mundo.
O
Capítulo I se desenvolve todo em cima da parábola do jovem rico (Mt 19,16-21). “Um
jovem aproximou-se de Jesus e lhe perguntou: Mestre, que devo fazer de bom para
ter a vida eterna? Disse-lhe Jesus: Por que me perguntas a respeito do que se
deve fazer de bom? Só Deus é bom. Se queres entrar na vida eterna, observa os
mandamentos. Quais? Perguntou ele. Jesus respondeu: Não matarás, não cometerás
adultério, não furtarás, não dirás falso testemunho, honra teu pai e tua mãe,
amarás teu próximo como a ti mesmo. Disse-lhe o jovem: Tenho observado tudo
isto desde a minha infância. Que me falta ainda? Respondeu Jesus: Se queres ser
perfeito, vai, vende teus bens, dá-os aos pobres e terás um tesouro no céu.
Depois, vem e segue-me!”
Cada
trecho da parábola é analisado e dele retiram-se ensinamentos da doutrina moral
católica. “Mestre, que devo fazer de bom para ter a vida eterna?”, nesta
pergunta o jovem mostra, no fundo, o desejo de todo homem de ter uma vida feliz
e verdadeiramente plena. O jovem pergunta quais ações ele deve fazer, portanto
a plenitude se alcança com ações concretas e moralmente corretas e não apenas
com escolhas fundamentais e distantes das atitudes diárias do indivíduo. Outro
fato que o jovem demonstra é a iniciativa de voltar-se para Cristo,
reconhecendo nele o caminho para a vida eterna.
Jesus
responde “Só Deus é bom”, e deixa claro que somente Deus pode responder a
questão do bem, pois só ele é o Bem. Em última análise o homem só encontra
resposta sobre o bem moral quando volta sua mente e seu coração a Deus.
Jesus
continua, “Se queres entrar na vida eterna, observa os mandamentos”. Aqui o
Senhor se refere aos mandamentos, que podem ser entendidos como os 10
mandamentos e a Lei de Moisés em concordância com a Lei Natural inscrita no
coração de todo homem. No Antigo Testamento a observância à Lei levaria o homem
a alcançar a Terra Prometida, já no Novo Testamento Jesus promete a Vida Eterna
para quem seguir seus ensinamentos. Sempre fica claro, na exposição do Papa,
que a Lei Natural não se contrapõe aos Mandamentos.
Após
o comentário do jovem, que demonstra a sua satisfação incompleta perante o fato
de atender plenamente os mandamentos do Antigo Testamento e ainda assim sentir
que falta algo, Jesus oferece uma alternativa mais radical, “Se queres ser
perfeito, vai, vende teus bens, dá-os aos pobres e terás um tesouro no céu.
Depois, vem e segue-me!”. Com esta passagem Jesus mostra o caminho da
perfeição, que passa pelo total desapego às coisas materiais. Aqui Jesus deixa
claro, que não basta ter uma postura ética e moralmente correta, é preciso mais
para se alcançar a plenitude nesta vida e consequentemente ganhar a vida
eterna. Atingir a perfeição passa pela busca da santidade, em última instância.
João Paulo II destaca aqui a atitude de Jesus de oferecer a opção ao jovem,
deixando a cargo de sua liberdade a adesão à proposta ou não. Deus sempre
obedece a liberdade do ser humano, e é sempre o homem o autor de suas próprias
escolhas.
No
segundo capítulo o Sumo Pontífice aborda algumas tendências que se contrapõem à
Sã Doutrina. Seguindo sempre o mesmo raciocínio, a Sagrada Escritura e a
Tradição são as fontes que dão o correto discernimento ao homem, através de
alguns princípios morais universais. A primeira tendência da teologia moral
hodierna diz respeito à relativização da verdade. Segundo essa tendência, cabe
à consciência individual o discernimento entre o que é moralmente bom ou mal.
Desta forma a consciência não estaria a serviço do entendimento de uma verdade
universal e posterior aplicação das escolhas morais. Pelo contrário, ela mesma
estabeleceria seus critérios morais subjetivos e, consequentemente, diferentes
dos critérios do próximo. Essa linha de pensamento desemboca no ateísmo ou na
negação da transcendência. Segundo os seguidores dessa tendência, a liberdade
deve ser exaltada a ponto de considerá-la como a licença de fazer o que se
queira, mesmo o mal, contanto que traga satisfação aos sentidos. Porém o Papa
deixa claro que a liberdade depende da verdade (não subjetiva e relativista e
sim universal). “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo 8,32).
Seguindo
essa mesma abordagem, alguns teólogos moralistas defendem a ideia de que a
doutrina católica e a Revelação divina estariam restritas ao estabelecimento de
critérios relacionados à ordem da salvação, enquanto que os critérios éticos de
origem humana é que deveriam ditar o conteúdo moral, dentro dos diversos
contextos e realidades da humanidade. Fica claro para o Papa que uma
interpretação que coloca a autonomia da razão humana acima das leis universais,
contradiz a Sã Doutrina, e deve ser condenada. “A lei moral provém de Deus e
nele encontra sempre a sua fonte”.
Para
aprofundar a temática da liberdade do homem e das suas escolhas, João Paulo II
aborda a dimensão da consciência humana. Dentro do coração de cada homem existe
uma lei natural, que pelo uso da razão, iluminada pela Revelação divina, leva-o
a reconhecer o bem e o mal. É no mais intimo do seu ser, lá na sua consciência,
que Deus fala ao homem e o faz discernir entre o que é certo ou errado. É por
essa consciência que o homem será julgado. A lei natural e a Verdade divina,
põem ao homem suas exigências morais, e a consciência coloca em prática essas exigências.
Na aplicação prática das escolhas da consciência é que acontece o vínculo entre
a liberdade e a verdade. O Papa finaliza essa seção dizendo que os cristãos
possuem um grande auxílio para formação da consciência, que são os ensinamentos
da Igreja, a grande mestra da verdade.
Ainda
falando sobre a liberdade, o Sumo Pontífice ressalta que as escolhas
deliberadas de um cristão devem estar de acordo com a opção fundamental, a qual
ele decidiu viver. Isto é, a escolha maior de uma pessoa, por exemplo, “ser
cristão e buscar a vida eterna”, deve orientar todas as escolhas cotidianas
dessa pessoa. Essa posição foi destacada, pois alguns teólogos e pensadores
dizem que as escolhas cotidianas do ser humano não interferem em sua opção
fundamental de vida. É o que acontece quando a pessoa diz já estar salva por
ter fé e ter aceitado seguir Jesus. Mas o Papa deixa bem claro que a
infidelidade do cristão, e o não cumprimento dos mandamentos de Deus, levam o fiel
a perder a graça da justificação.
Na
seção IV do Capítulo II, João Paulo II trata sobre o Ato Moral. É exposta a
errônea tendência hodierna de classificar um ato moral pelas suas
consequências, e pela proporção de resultados bons ou ruins. Trata-se do
consequencialismo ou proporcionalismo. Segundo esse pensamento, seria lícito e
moralmente aceitável praticar um ato que prejudique alguém, mas que gere
benefícios para uma quantidade maior de pessoas. Ou então, um ato que vá contra
a Lei divina e os mandamentos, mas que gere mais consequências positivas do que
negativas. Ou ainda, um ato que seja uma boa obra, mas que não possua boas intenções.
O Papa ratifica a posição da Igreja, e vai contra essas linhas de pensamento,
dizendo que a “moralidade do ato humano depende primaria e fundamentalmente do
objeto razoavelmente escolhido pela vontade deliberada”. Em ultima instância, o
ato moralmente bom é aquele que é feito buscando-se conscientemente agradar a
Deus.
O
Capítulo III traz o caminho para a liberdade, que passa sempre pela verdade e
pela cruz de Cristo. A experiência humana mostra que a liberdade individual
constantemente está inclinada para a escolha de bens efêmeros e passageiros. O Papa
chega a dizer então que "a
liberdade necessita de ser libertada. Cristo é o seu libertador”.
João
Paulo II condena fortemente a mentalidade que tenta separar Fé e Moral. Como se
a Igreja devesse se preocupar e manifestar apenas sobre a primeira. É um grande
equívoco acreditar que a Fé seria apenas uma busca transcendental de Deus e que
para entrar em comunhão com ele não seria necessário seguir condutas moralmente
corretas e absolutas. A palavra para ser acolhida necessita obrigatoriamente
ser posta em prática, portanto Fé e Moral são duas vertentes que andam juntas.
A
seguir são tratados alguns temas sobre os quais os atos morais possuem grande
importância social, como por exemplo, na política, na economia e nos diversos
campos da sociedade. O Papa exorta os teólogos moralistas a praticarem um
cuidadoso discernimento moral, perante uma sociedade dominada pela ciência e a técnica,
sujeita aos perigos do relativismo, pragmatismo e positivismo. Ele ressalta que
os princípios morais não fazem parte de um estudo empírico e científico, e que
somente a Fé indica ao homem a verdade sobre as coisas. Por fim o Sumo
Pontífice conclama todos os Bispos a seguirem os fundamentos básicos da moral
católica, e defenderem e pregarem a Sã Doutrina, em detrimento de tantas formas
de pensamentos existentes dentro e fora da Igreja.
A
preocupação do Papa João Paulo II em reafirmar e esclarecer alguns fundamentos
da doutrina moral católica era importante naquele ano de 1993 e continua sendo,
principalmente nos dias de hoje. Os pensamentos que se opõem aos ensinamentos
da Igreja Católica se tornam cada vez mais presentes no meio da sociedade
cristã. O relativismo, o positivismo e o racionalismo, aliados à exaltação de
uma falsa liberdade, estão levando confusão e cegueira aos homens dos dias de
hoje. A contenção dos desejos é vista como uma repressão e um assalto à
liberdade humana; a defesa dos direitos básicos de vida do ser humano é julgada
pela sociedade como um pensamento retrógrado; a existência de valores morais
universais é entendida como um doutrinamento irracional por parte da Igreja,
imposto aos seus fieis. Várias são as formas de condenação aos valores morais
cristãos e católicos. Apesar de todo o cenário aparentemente negativo, é
visível a ação do Espirito Santo no meio do povo, sempre trazendo luz onde há
escuridão.
Após
uma busca da verdade, de forma consciente, livre e honesta, por parte do ser
humano, não existem possibilidades mais plausíveis, que expliquem os mistérios da
vida, do que a verdade proveniente da divina Revelação. Após um forte
questionamento racional do homem sobre suas indagações existenciais, não restam
dúvidas sobre a necessidade da Fé para se obter respostas sensatas. Chegada à
aceitação de Jesus Cristo, o homem observa que a obediência aos mandamentos
pode até ser uma difícil tarefa, porém não existe contradição com a lei natural
inscrita em seu coração. Em consequência disto, o homem compreende o Esplendor
da Verdade que vem de Jesus Cristo, o homem perfeito, com valores morais
perfeitos e com ensinamentos que, se cumpridos, levam todos à vida eterna.
A
presente encíclica é útil para todos os homens de boa vontade, que buscam a
verdade com coração aberto e sincero. Os pensamentos nela defendidos e
condenados servem para orientar a todos que buscam levar uma vida moralmente
correta, evitando que caiam em ensinamentos deturpados e distanciadores da
verdade. O documento deveria ser sempre relido pelo corpo sacerdotal da Igreja,
pelos teólogos moralistas e todos aqueles que receberam a missão de levar luz
ao mundo, para que não se percam em tendências modernistas.
Hugo
de Paula Prudente é acadêmico do segundo ano do Curso de Teologia da Pontifícia
Universidade Católica de Goiás.
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